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Fartura de Gratificações: Prefeito e aliados tentam legalizar bônus financeiro através de projeto de lei inconstitucional

Ministério Público aponta ilegalidade e indícios da prática de atos de improbidade administrativa por parte dos agentes públicos envolvidos na elaboração de projeto de lei que cria gratificações para aliados do prefeito Marcão do Haras.

O cenário político de Fartura volta a exalar o conhecido odor da velha política do compadrio. O prefeito Marcão do Haras, em parceria com o presidente da Câmara, Bruno Guazzelli Durço, protagoniza mais um capítulo de “criatividade legislativa” para premiar seus próprios aliados com dinheiro público. Desta vez, a manobra vem travestida de projeto de lei (PL nº 71/2025), que cria “gratificações” polpudas para os membros da Comissão de Regularização Fundiária (Reurb) — todos nomes com vínculos políticos íntimos do Chefe do Executivo.

Segundo denúncia protocolada no Ministério Público e o despacho do promotor da Comarca de Fartura, Dr. Francisco Antonio Nieri Mattosinho, o projeto de lei é uma obra-prima de ilegalidade e afronta direta à Constituição Federal. As gratificações propostas pelo Executivo, de até R$ 1.804,00 mensais, com valores reajustáveis anualmente, seriam pagas justamente a servidores ocupantes de cargos que já possuem como atribuições a fiscalização e promoção da regularização fundiária de loteamentos irregulares. Em bom português: dinheiro extra pelo trabalho que lhes é dever exercer como atribuições de seus cargos — o que a lei chama de “bis in idem” e o cidadão chama de privilégio descarado.

Entre os agraciados, nomes familiares da engrenagem política local: Luciana Meneguel Cardoso, atual supervisora da Fiscalização e ex-candidata a vereadora pela chapa do atual prefeito; Kamila Pontello Marcato de Andrade, engenheira civil e esposa do secretário da Administração, Guilherme Camargo de Andrade, um dos principais articuladores políticos da campanha eleitoral e braço direito de Marcão do Haras; e Ricardo Yassuo Taira, fiscal de obras e apoiador do governo municipal.

Além dos servidores citados, que já compõem a Comissão de Regularização Fundiária, a denúncia enviada ao Ministério Público também aponta Isabela Pinterich Lima, atual procuradora-geral e nome de confiança do prefeito, como uma das beneficiárias das gratificações após a aprovação do projeto de lei. Todos escolhidos a dedo, como se a Comissão de Reurb fosse mais um prêmio de fidelidade partidária.

O promotor não economizou na caneta em seu despacho: classificou o projeto como “despesa pública sem causa legítima, desvio de finalidade e afronta direta aos princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade”. E foi além: destacou que os mesmos servidores que agora seriam recompensados “foram omissos na fiscalização que deveria evitar os loteamentos irregulares” — ou seja, a Prefeitura de Fartura resolveu pagar gratificação para quem deixou o problema acontecer.

Omissão das Procuradorias Jurídicas

E se o Executivo e o Legislativo caminham de mãos dadas na ousadia, as Procuradorias Jurídicas da Prefeitura e da Câmara Municipal seguem em marcha lenta — ou melhor, de olhos bem fechados. Projetos de lei manifestamente inconstitucionais chegam à pauta sem análise, sem parecer e sem pudor. O controle prévio de legalidade, que deveria ser o escudo da moralidade administrativa, virou um enfeite decorativo nas gavetas do poder. Em Fartura, os pareceres jurídicos parecem ter sido substituídos por um carimbo invisível que diz: “Aprovado, desde que agrade o prefeito.”

E a situação vai além da negligência: há sérias dúvidas se os projetos de lei estão sequer sendo encaminhados às procuradorias jurídicas para análise prévia de legalidade. A ausência de pareceres jurídicos tem se tornado tão frequente que já não parece falha — parece política institucionalizada. A cada novo projeto que chega à Câmara sem respaldo técnico, cresce a suspeita de que a legalidade deixou de ser um requisito e passou a ser um mero detalhe incômodo no caminho dos interesses políticos.

Troca de favores e benesses políticas

O roteiro dessa novela política tem uma reviravolta digna de sarcasmo. As mesmas servidoras, Luciana Meneguel Cardoso e Kamila Pontello Marcato de Andrade, hoje no centro das benesses da gestão municipal, já foram protagonistas de denúncias de assédio moral contra o ex-prefeito Luciano Filé, meses antes das eleições municipais de 2024 — denúncias que acabaram arquivadas pela Promotoria de Justiça de Fartura e pelo Ministério Público do Trabalho por falta de provas. O tempo, porém, parece ter sido generoso com ambas: Luciana foi promovida a Supervisora da Fiscalização, passando de um salário de R$ 4.300,00 para R$ 5.900,00, enquanto Kamila, engenheira civil com carga horária de 20 horas semanais, viu seus vencimentos saltarem de R$ 6.000,00 para R$ 7.400,00, conforme os últimos vencimentos registrados no próprio Portal da Transparência da Prefeitura de Fartura.

Caso a criação das gratificações fosse aprovada, Luciana passaria a receber cerca de R$ 7.700,00, acumulando a gratificação de presidente da Comissão de Reurb, e Kamila passaria a receber a expressiva remuneração de R$ 8.800,00, considerando a gratificação de membro da comissão.

E não para por aí: outra denunciante do ex-prefeito, Ariele Magda Silvério Rodrigues, também colheu os frutos da fidelidade política. Hoje nomeada Secretária Municipal da Assistência Social, Ariele viu seu contracheque engordar de R$ 4.000,00 para R$ 7.000,00. Coincidência? Talvez. Mas, em Fartura, coincidências costumam ter CPF, cargo comissionado e gratificação atrelada.

Pedido de vista

Na última sessão ordinária da Câmara, realizada em 20 de outubro, o vereador João Buranello pediu vista do Projeto de Lei nº 71/2025, após identificar indícios de irregularidades na redação da proposta. Demonstrando o tipo de diligência que deveria ser regra — e não exceção —, o parlamentar oficiou o prefeito Marcão do Haras solicitando cópia do parecer jurídico que teria respaldado o envio do projeto ao Legislativo. Até o momento, nenhuma resposta foi encaminhada ao vereador, o que reforça a suspeita de que o parecer talvez nunca tenha existido.

Retirada do projeto de lei

E, num gesto que soa mais como tentativa de apagar o incêndio do que de preservar a moralidade administrativa, o prefeito Marcão do Haras, assim que tomou ciência do teor do despacho do promotor nesta terça-feira, determinou a retirada imediata do Projeto de Lei nº 71/2025 da Câmara de Vereadores. O timing, é claro, não poderia ser mais conveniente: quando o Ministério Público acende a luz, o Executivo corre para desligar o refletor.

“Puxadinho” da Prefeitura

A cereja do bolo da imoralidade veio do Legislativo. O presidente da Câmara, Bruno Guazzelli Durço, teria colocado o projeto de lei para votação sem parecer jurídico e sabendo das irregularidades, numa demonstração de que o Legislativo farturense se tornou uma extensão obediente do Poder Executivo.

Em um trecho do despacho, o promotor da Comarca de Fartura deixa clara a omissão sistemática do presidente da Câmara, apontando como igualmente grave a omissão das procuradorias jurídicas:

O Presidente do Legislativo não é um mero espectador do processo de formação das leis; a ele incumbe o dever de zelar pela regularidade e constitucionalidade da tramitação. Pautar, de forma consciente, um projeto manifestamente inconstitucional, omitindo-se de submetê-lo ao devido controle prévio de legalidade, pode configurar ato de improbidade por violação dolosa aos deveres de legalidade e moralidade.

Igualmente grave é a apontada “omissão sistemática” das Procuradorias Jurídicas da Prefeitura e da Câmara Municipal. O parecer jurídico prévio em projetos de lei que criam despesa é um instrumento essencial de controle preventivo da legalidade. A omissão em emitir tal parecer, ou a emissão de um parecer favorável a uma norma com vício tão grosseiro, não pode ser tratada como mero lapso. A jurisprudência, embora resguarde a liberdade de convicção do parecerista, admite sua responsabilização em casos de erro grosseiro, inescusável ou dolo. A omissão em apontar uma inconstitucionalidade tão evidente como a remuneração em bis in idem pode ser enquadrada como erro grosseiro, atraindo a responsabilidade dos advogados públicos por ato de improbidade, por terem concorrido para a prática do ato principal.

Investigação em curso

O Ministério Público agora investiga possíveis atos de improbidade administrativa, lesão ao erário e violação dos princípios da administração pública. A julgar pelo teor do despacho, o caso tem potencial para se transformar em mais um escândalo que envergonha a política local — onde o mérito dá lugar à lealdade e o dinheiro público vira moeda de gratidão.

Na conclusão de seu despacho, o promotor destaca que “o Projeto de Lei nº 71/2025 é materialmente inconstitucional e ilegal e contêm robustos indícios da prática de atos de improbidade administrativa por parte dos agentes públicos envolvidos”.

Como ironia do destino, o despacho do Ministério Público veio a público justamente em 28 de outubro, Dia do Servidor Público. Enquanto em todo o país se homenageia a dedicação e o compromisso ético dos verdadeiros servidores públicos, em Fartura somos lembrados de que há quem trate o serviço público como um balcão de interesses privados, e o cargo público como fonte de renda extra custeada com o dinheiro do povo.

Fonte: Ministério Público

Na íntegra o despacho emitido pela Promotoria de Justiça:
Notícia de Fato nº 0263.0000142-2025